domingo, 12 de março de 2023

Amanhã

 


   Começamos pelos sapatos, seria mais fácil, nem todas calcávamos o mesmo número de modo que os que Adélia gostasse poderia ficar com ela . Sugeri que fizéssemos um bazar beneficente com tudo o que restasse mas Antonia achou que daria muito trabalho e o melhor seria doar mesmo, gente não faltaria , da paróquia da igreja aos funcionários da casa todos ficariam agradecidos. Agradecidos … agradecidas deveríamos ser nós que pudemos contar com Paula, Jessica e Fabíola nesses últimos anos, não fossem elas Antonia não daria conta . 

   Passamos às roupas, o dia estava rendendo. Adélia sugeriu que fechássemos a janela já que o vento frio de um inverno fora de época parecia congelar o quarto . Não !!! Não fecha a janela não que eu me sinto angustiada, reclamei . Seria a janela ? As roupas  nos traziam muita memória, muito mais que os sapatos que nos passaram batido . A festa de formatura da Celeste, a primeira comunhão do Angelo  ou o batizado do Leo,parecia vê-la ali elegante e distinta como sempre foi . Respirar fundo pode ser bom nesses momentos . Ela adorava esse Robe azul, estava sempre com ele nas chamadas de vídeo eu disse tentando aplacar minhas memórias . Ela preferia o amarelo disse Antonia . Antonia sabia, sabia mais que todas nós, foi a única que permaneceu ali quando todas tomamos nosso rumo . Nunca nos perguntamos se foi por escolha ou por inércia, o fato é que sempre dissemos que ela era a preferida . Não casou, não teve filhos mas foi uma tia muito amada e querida por todos além de uma professora fantástica para seus alunos de música que a tinham em alta conta . Uma chamada de vídeo me distraiu, era Mércia dos EUA, queria saber como estávamos indo e o nosso progresso nessa operação . Mércia não podia estar conosco, veio rapidinho para um último adeus e mal participou do funeral , compromissos inadiáveis a esperavam . Era sempre assim . 

   O piano é meu ! Gritei  quando desci as escadas para receber o correio . Claro, além de ser um presente dado em vida por meu pai hoje o piano era também meu instrumento de trabalho . 

   O dia já terminava e o cansaço parecia nos abater, faltava muita coisa mas poderíamos deixar para amanhã .Sempre haverá um amanhã era o que ela sempre dizia quando nós despedíamos . Sorri .As jóias não seriam problema, minha mãe nunca gostou  muito de joias e as poucas que tinha dividiu em vida entre filhas e netas de acordo com a identificação da presenteada com a peça . Todo mundo estranhou quando o broche de libélula foi para a filha mais moderna da Mércia ,mas a menina compreendeu , minha mãe sempre teve dessas coisas de enxergar além do que a gente via . 

Passamos ás caixas , fotografias, cartas , bilhetes e cartões que nos traziam inúmeras lembranças , tudo guardado, nem um bom

dia vovó escrito num guardanapo lhe escapava, tudo ali em caixas , uma vida de afetos , recados , escritos . Decidimos guardar as fotos e os bilhetes, talvez separar os menos relevantes … o que seria menos relevante ali ? 

   Quando percebemos já era noite alta e a fome bateu . Pode ser pizza pra todo mundo ou alguém tem alguma restrição ? Naquela hora da noite quando percebemos que a fome se agigantava a pizza parecia uma ótima ideia . Sentamos, ninguém ocupou a cabeceira da mesa, aquele lugar permaneceria vazio . Comemos em silêncio e Adélia falou que lavaria os pratos para que pudéssemos encerrar o capítulo fotos e cartas . Encerramos . Fechamos o quarto desanimadas com tudo que faltava ainda e nos despedimos . Amanhã a gente volta . Sempre haverá o amanhã . 


Maria Ísis 

   

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