terça-feira, 23 de fevereiro de 2016


A menina que rezava

Quando ela era pequena, todos os dias antes de dormir , ela repetia meio sem sentir, a oração que sua mãe lhe ensinou. Pedia proteção, alegria, agradecia o dia ou pedia perdão... Assim ela adormecia e quando acordava ainda trazia no peito aquela sensação .
Com o tempo aquela oração foi se tornando uma longa conversa quando,  ao fim de mais um dia, ela juntava suas mãos no peito e se conectava com sua energia, com o sentimento de amor supremo que ela sabia, era o que guiava seus passos.
Mas a menina foi crescendo e seus afazeres , cursos, amizades, festas, conflitos e interesses foram se avolumando  e se agigantando diante do tempo que parecia estar diminuindo.... O tempo já não lhe sobrava para aquela prosa com o divino . E então, tarde da noite, exausta , depois de checar os e-mails , o facebook , o Instagram, o Snapchat o Pinterest e o WhatsApp ela adormecia ... Adormecia completamente ( des) conectada. E acordava apressada sem aquele calor que por tanto  tempo aqueceu sua  alma , que foi sentindo  um frio,  um vazio.
Mas.... " Como tudo conspira para o melhor no melhor dos mundos" a menina acordou , olhou a sua volta e buscou .Como buscadora que era , ela encontrou... E então ganhou asas para voar e pés mais firmes para caminhar .
M Isis

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016


A menina que dançava

Quando sua mãe estava grávida, dizia que sua barriga era um eterno rebolar, o bebê ali presente, mexia pra cá e pra lá , sem parar . Assim nasceu a menina, toda forte, iluminada, sorridente e bem aventurada. Senhora da graça dos movimentos, logo ao nascer se espreguiçou num gostoso alongamento.
Então cresceu a menina que engatinhou e andou no   tempo certo ,se é que há um tempo certo para essas coisas do desenvolvimento humano. Na escola , pouco falava, mas se movimentava com tanta graça e leveza que se fazia compreender pelo movimento, movimento dos olhos,da cabeça ,  movimento dos cabelos, os braços sempre abertos, o quadril que se adiantava ao corpo num leve remelexo, o jeito como abria seu peito e parecia entregar- nos  o seu coração . Mas a menina  queria falar mais, queria experimentar novas emoções e sensações  e assim começou a dançar. E dançou , dançou tão lindamente que nunca mais parou. Ela espalhou sua dança pelo mundo e por onde passou, e todos que a viam  dançar compreenderam que ela não apenas dançava, seu corpo em movimento , que encantava a todos com sua magia e harmonia é o que dava voz ao seu coração .  
M Isis

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016


A menina que amava o mar

Nem todos se acostumam com o lugar em que nasceram . Pra   menina aquilo era a maior verdade. Nascida e criada no campo , acostumada a água calma e doce do riacho, a relva sem fim e ao por  do sol nas montanhas, seu maior sonho era conhecer o mar. Sempre se sentiu deslocada naquele lugar, buscava o sal, a areia, e bebia as estrelas do céu na esperança de transformá-la sem estrelas do mar . Mas daquela terra ninguém se aventurava sair e as histórias que vinham do mar eram tenebrosas, terríveis.... Os poucos jovens que se aventuravam jamais retornavam embriagados pelo encanto das sereias ou tragados pelos monstros marinhos . Por isso ela também não se encorajava a sair dali, daquele porto seguro, daquela terra macia que não escoava entre seus dedos , daqueles campos vastos onde os dias começavam e terminavam sem mudanças de humor ou de marés.... Sonhava com o mar que não conhecia ao ouvir seu som numa grande concha trazida por um forasteiro , e idealizava em seus sonhos a entrada triunfante naquelas ondas imaginarias . Um dia , a oportunidade surgiu junto a um mascate que morava no litoral . Ela já era moça criada mas seu sonho de menina ainda se mantinha firme .
Recusara um sem números de pretendentes bem estabelecidos  naquelas terras por medo de que o casamento aquietasse sua alma inquieta . Combinaram tudo, marcaram hora e lugar. Ela fez as malas, pouca coisa levaria além de sua determinação e coragem . E o dia amanheceu marcado pela tristeza que sua ausência causou a todos. Mas não a ela, não a mim , que a despeito das saudades sempre desconfiei dos seus olhos marejados , ela não era filha desta terra e agora na imensidão do mar era acolhida nos braços de sua mãe Iemanjá.

M Isis

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016


A menina que engoliu as palavras .

Aquela menina era muito diferente. Eu não lembro exatamente como tudo começou porque  nascemos na mesma época. Minha mãe e minha tia se casaram , geraram e pariram no mesmo ano. Uma semana separaram os dois nascimentos , e pra meu desencanto ela era a mais velha . Pouco se falava do dia em que ela nasceu, assunto cercado de segredos e cuidados em nossa família , mas pelo que pude apurar com minha pouca idade , e meus ouvidos atentos , o assunto sempre despertou minha curiosidade e interesse.
Contam que logo ao nascer,  ela ao invés de chorar como todas as crianças , se pôs a argumentar e questionar porque não a deixavam em paz na tranquilidade do útero materno. Isso mesmo, falando como gente grande . Ainda no  berçário , pedia o peito, a chupeta , o colo ou a troca de fraldas enquanto os outros bebês se esgoelavam  em busca do aconchego.  As enfermeiras acharam por bem separa-lá das outras crianças para que sua falação não perturbasse o sono dos bebês . Os médicos , pouco tinham a esclarecer, alegavam que nunca tinham visto nem na vida real e nem na literatura médica coisa igual ... Que aguardássemos o tempo, a evolução do caso e novos estudos . Assim crescemos  eu e ela amigas inseparáveis. Dizem que éramos muito parecidas e engatinhamos, nos sentamos e andamos na mesma época , o que demonstrava a normalidade de minha prima falante . O único inconveniente é que não tendo ainda desenvolvido o bom senso, a censura e a noção do politicamente correto que nesta época começava a despontar , minha prima falava o que lhe vinha a mente sem ao menos se perguntar se realmente era necessário, aquele falar .  Às vezes nos colocava a todos em situações bem difíceis ora repetindo o que ouvia em sua casa , ora com observações inoportunas fruto de suas próprias reflexões de menina .  E a cada situação vexatória a prima era severamente repreendida pela família que já estava exausta de tantos mal entendidos . Foi assim que minha prima começou a pensar , pensar antes de falar .... e foi ficando cada vez mais quieta , mais calada . Hoje, do bebê falante e da menina inconveniente pouco resta, afundada em um mundo de limitações , convenções, regras e preceitos ela achou melhor calar-se pra evitar problemas . Engoliu as palavras e dela nunca mais se ouviu a voz .
M Isis

domingo, 7 de fevereiro de 2016


Buraco

Naquela casa todos jogavam buraco. Era quase que uma senha para pertencer a nossa gente, um ritual de passagem para amigos e namorados que se aventurassem a querer ser um dos nossos . Crianças , junto com a alfabetização e as primeiras letras vinha o conhecimento do que eram canastras, trincas, reis e damas. Todos queriam pegar o morto que vinha cheio de novidades  e sem o qual perderíamos cem pontos. Jogávamos entre nós numa mesa separada dos adultos, mas quando lhes faltava um parceiro poderíamos ser convocadas , o que era sinal de muito orgulho, sentar na mesa dos adultos e jogar como gente grande . Nestes dias , ficávamos até tensas e preocupadas em fazer bonito e não deixar que a distração sabotasse nossa iniciação naquele mundo, o que poderia ocorrer se descartássemos  uma canastra ou um curinga aos nossos adversários. E como a sorte sempre sorri aos principiantes , nossa iniciação era quase sempre triunfal !
Quando crescíamos, nossos amigos e namorados também passavam pelo ritual de iniciação na mesa de buraco. E passávamos noites , cheios de paixão e desejo , com o coração acelerado , esperando o valete de copas que completaria nossa canastra real .
Na mesa , água, às vezes pipoca, poderia ter coca cola e cerveja pros adultos , mas isso não era necessário .... Ah ! E café, que era pra espantar o sono . Sempre  uma musiquinha de fundo , Elis , Vinicius, Chico, Toquinho ou algum outro ilustre representante da música brasileira . E  entre os descartes, as trincas, o cobiçado morto e os curingas, discutíamos religião, política, futebol , conceitos , preceitos, normas e dogmas.... Às vezes as discussões se tornavam calorosas, mas nada que uma breve chamada á razão , (olha a canastra na mesa ), não pudesse conter ! E meu pai, que segundo minha mãe era quem mais gostava de jogar, ia dando o ritmo da sua toada com sua risada fácil e suas eternas cobranças para que o parceiro ficasse atento, comprasse a mesa, descesse tudo ou pegasse o morto.
Ficávamos assim nos fins-de-semana , entre nós e as cartas numa convivência aconchegante e protetora onde pra além da malícia do jogo aprendíamos muito sobre nós e sobre os nossos criando entre nós  uma grande intimidade  uma gostosa convivência.
M Isis

sábado, 6 de fevereiro de 2016


Do avesso

Minha Tia não era desse mundo . Caiu meio que por engano de algum mensageiro brincalhão, no meio daquela família onde tudo era muito certo, correto, direito e estreito . Não havia naquela casa muito espaço pra divergências.
Minha tia tinha  um brinco de madrepérola que eu nunca soube direito a cor . Dizíamos que ela se alterava ao sabor do seu humor ou da sua dor. Era lindo quando o brinco refletia o azul do céu ou a negritude da noite.
Minha tia era assim, uma pessoa diferente de todas as outras que eu conheci. Às vezes ela saía de casa com o vestido do lado do avesso e nem percebia. Eu não estranhava porque sabia que isso era  uma  tentativa dela desvirar sua alma que também vivia do avesso. É que minha tia era meio ao contrário e ria de se acabar quando a tristeza lhe invadia o peito ..... E chorava até soluçar quando a alegria se tornava presente . Pra mim ela tinha era um jeito de ver as coisas de forma diferente . Ela era assim , se dizia, virada .... Por isso eu não estranhei quando ela partiu toda bonita e perfumosa e nunca mais voltou . Também ninguém nunca mais a encontrou e a despeito da dor de todos,  eu estava era contente . Eu sabia que pra minha tia , nascer foi doído demais e nesse jogo dos contrários em que ela havia vivido , agora morrendo é que ela estaria a viver....
M Isis

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016


Minha terra

Dali só se saía  morto, dali todos saiam com os olhos lacrimejantes  a enterrar seus mortos e junto a eles algumas certezas e esperanças.... Última morada, último  suspiro, última lua que se podia ver entre as frestas da janela de madeira apodrecida . Por isso eu queria  ficar ali, por isso eu não queria sair da vila , por isso não queria ir pra cidade grande onde tubos e cabos poderiam aumentar meu viver já sem vida.  Queria partir tragado pelas entranhas daquela terra onde nasci e me fiz gente. Olhar por aquelas  janelas arrebentadas donde se podia ver a lua e com sorte até uma estrela cadente. Naquela terra amanheci quantas primaveras me foram destinadas e envelheci no tempo certo do inverno que nos acolhe a alma. Por vezes o outono me tocou com suas manhãs claras e frescas para mais um dia, outras o frio se apossou do meu espírito que permanecia na noite mesmo quando o amanhecer se fazia imponente. Nesta terra dei os primeiros passos acolhidos ora pelo vento pra pela chuva. A terra que recebeu meus joelhos machucados a cada queda e que sangrava comigo a cada mês , porque esta terra também é mulher . Terra sagrada onde me fiz moça e como fruta madura também envelheci. Terra que acolheu meus frutos e deu a eles e a mim a certeza do amanhã . Por isso meu  queria ficar ali, mesmo sabendo que dali só saíam os mortos. E não era que eu tivesse me desapegado da vida , a vida é que tinha se desapegado de mim .
M Isis