segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016


A menina que engoliu as palavras .

Aquela menina era muito diferente. Eu não lembro exatamente como tudo começou porque  nascemos na mesma época. Minha mãe e minha tia se casaram , geraram e pariram no mesmo ano. Uma semana separaram os dois nascimentos , e pra meu desencanto ela era a mais velha . Pouco se falava do dia em que ela nasceu, assunto cercado de segredos e cuidados em nossa família , mas pelo que pude apurar com minha pouca idade , e meus ouvidos atentos , o assunto sempre despertou minha curiosidade e interesse.
Contam que logo ao nascer,  ela ao invés de chorar como todas as crianças , se pôs a argumentar e questionar porque não a deixavam em paz na tranquilidade do útero materno. Isso mesmo, falando como gente grande . Ainda no  berçário , pedia o peito, a chupeta , o colo ou a troca de fraldas enquanto os outros bebês se esgoelavam  em busca do aconchego.  As enfermeiras acharam por bem separa-lá das outras crianças para que sua falação não perturbasse o sono dos bebês . Os médicos , pouco tinham a esclarecer, alegavam que nunca tinham visto nem na vida real e nem na literatura médica coisa igual ... Que aguardássemos o tempo, a evolução do caso e novos estudos . Assim crescemos  eu e ela amigas inseparáveis. Dizem que éramos muito parecidas e engatinhamos, nos sentamos e andamos na mesma época , o que demonstrava a normalidade de minha prima falante . O único inconveniente é que não tendo ainda desenvolvido o bom senso, a censura e a noção do politicamente correto que nesta época começava a despontar , minha prima falava o que lhe vinha a mente sem ao menos se perguntar se realmente era necessário, aquele falar .  Às vezes nos colocava a todos em situações bem difíceis ora repetindo o que ouvia em sua casa , ora com observações inoportunas fruto de suas próprias reflexões de menina .  E a cada situação vexatória a prima era severamente repreendida pela família que já estava exausta de tantos mal entendidos . Foi assim que minha prima começou a pensar , pensar antes de falar .... e foi ficando cada vez mais quieta , mais calada . Hoje, do bebê falante e da menina inconveniente pouco resta, afundada em um mundo de limitações , convenções, regras e preceitos ela achou melhor calar-se pra evitar problemas . Engoliu as palavras e dela nunca mais se ouviu a voz .
M Isis

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